quinta-feira, 1 de agosto de 2019

ALTERAR O TIPO DE PISADA É BENÉFICO AO CORREDOR?

Em duas postagens anteriores foram abordadas a questão da corrida com retropé e antepé do ponto de vista da economia de corrida (https://bit.ly/32vyvDN) e da performance (https://bit.ly/2YcDtHo). Para quem ainda não leu nada à respeito do tipo de pisada, estamos falando sobre efetuar o toque do pé  com o calcanhar (retropé), com a ponta do pé (antepé) e com a ponta do pé e, sequencialmente, o calcanhar (meiopé) para posterior propulsão com o antepé nas três situações. 


E como dito em posts anteriores, muito da forma como utilizamos a pisada depende da velocidade com que corremos e do padrão que utilizamos desde quando aprendemos a correr. 


Figura 1 - Ilustração da corrida com antepé (esquerda) e da corrida com retropé (direita)


Há um bom tempo, autores como Irene Davis e Daniel Lieberman apresentam estudos sobre os benefícios da corrida com ante e mediopé em termos de redução de lesão, mas como ciência é a contraposição de idéias,  e isso resulta na geração de mais dúvidas, apresentamos aqui as idéias de outro estudioso da corrida, o professsor Joseph Hamill, questionando os benefícios da troca do tipo de pisada de retropé para antepé. 

Acreditamos que esta contraposição seja importante para que você, leitor, possa tirar as suas conclusões, e se ainda tiver duvidas, continuar debatendo à respeito para tornar o seu posicionamento mais embasado. 

Considerando-se a performance dos fundistas dos tempos atuais, o artigo aqui escolhido, de Hamill e Gruber, demonstra dois estudos que se contrapõem em termos de apresentação de dados sobre o uso do antepé ou retropé na corrida para a população de corredores africanos, talvez os atletas mais observados na atualidade por conta de suas performances recentes. Um dos estudos, do professor Lieberman, apresenta dados da predominância da corrida com antepé mesmo quando os corredores africanos correm calçados e, outro estudo de Hatala e colaboradores, demonstrando que 72% dos corredores africanos que correm descalços utilizam o retropé em suas corridas, sendo avaliados em várias regiões da Africa. Ou seja, existe uma discordância sobre a utlização do antepé e retropé na população que mais se destaca nas corridas de fundo nos dias atuais. 

Professor Hamill e Gruber relatam as razões utilizadas hoje em dia para a sugestão  da troca do tipo de pisada: 

1. Economia de energia (olha ela ai novamente, ver nosso post ENTENDENDO O CONCEITO DE ECONOMIA DE CORRIDA); 
2. Redução da magnitude de impacto e da velocidade em que ele ocorre (taxa de impacto)
3. Redução do risco de lesões relacionadas à corrida. 

À partir deste ponto apresentaremos as idéias de Hamill e Gruber contrapondo estes argumentos. 

Quanto à influência da troca de pisada na Economia de Corrida (EC) o nosso post anterior já demonstrou que isso não ocorre quando apresentamos o trabalho de Roper e colaboradores (https://bit.ly/32vyvDN), mas Hamill e Gruber ainda apresentam outros trabalhos com o mesmo argumento, onde o estudo mais interessante, demonstra que  quando os participantes correram com sua forma não habitual, o grupo que corria com retropé habitualmente demonstrou um aumento no consumo de oxigênio (aumento de gasto energético) ao correr com antepé, e o grupo que corria habitualmente com antepé, não teve este aumento do consumo de O2 quando correu em retropé.  

Outro estudo citado pelos autores destaca a questão da maior oxidação de carboidrato quando se corre com antepé em velocidades baixas e moderadas, demonstrando que não existe economia de substrato. Esta condição de corrida pode acelerar a diminuição dos estoques de carboidrato, dificultando a manutenção de uma corrida de maior duração, já que este substrato é necessário para a utilização de gordura nas corridas como meias, maratonas completas ou ultramaratonas.  E ainda citam um terceiro estudo mostrando que corredores de ante e mediopé tendem a correr com retropé em situação de fadiga nas corridas de longa duração.  Com isso contrapõem a razão de maior economia onde o argumento utilizado é o aproveitamento da energia elástica do músculo quando este alonga e rapidamente se contrai, mas isso somente ocorre em corridas de velocidades maiores. 


Figura 2 - Observando a forma como se faz o toque do pé no piso. 


Quanto ao impacto, ao se observar o comportamento da força de reação do solo, a qual chamamos de impacto, em cada tipo de pisada percebemos que existe uma diferença em sua manifestação. Veja no gráfico à seguir que a corrida no retropé (RF) apresenta dois picos (pico de impacto e pico ativo) e na de antepé (FF) somente o pico ativo. No que implica estas condições? 

Gráfico 1 - Demonstrando o comportamento da força de reação do solo (impacto) nos membros inferiores quando o pé está em contato com o solo em cada tipo de pisada: retropé (RF) e antepé(FF). Pico de impacto é a força que ocorre muito rapidamente, logo no início da pisada. Pico ativo é a força que geramos durante a propulsão (ponto mais alto das curvas.


Segundo uma análise feita em relação ao tempo, Hamill e Gruber não questionam a existência do pico de impacto (Impact Peak), mas fazem questão de demonstrar a ocorrência deste pico, através de outro tipo de análise, na faixa de frequencia de 10 a 20 Hz, como demonstrado no gráfico 2. Isto significa que a informação do gráfico 1 de inexistência de um pico passivo não procede seguindo esta outra análise. A corrida com antepé apresenta este impacto mas ainda com uma amplitude menor que na corrida com retropé. Lembrando que o pico passivo e, mais especificamente, uma maior velocidade de sua ocorrência são indicativos que sugerem uma maior possibilidade de lesões. 

Gráfico 2- Gráfico demonstrando a manifestação da amplitude do impacto em diferentes frequencias nos membros inferiores nas duas pisadas: retropé (RF) e no antepé (FF)

Outro ponto destacado pelos autores com relação ao impacto e ao tipo de pisada é como esta relação pode interferir no tipo de lesão que pode surgir. Hamill e Gruber destacam  estudos onde foram destacadas a pisada com retropé sendo melhor para alguns parâmetros e a pisada com antepé para outros parâmetros. A alteração de pisada de retropé para antepé pode diminuir a demanda na articulação do joelho, mas aumentar no tornozelo e pé, e vice versa. Isso sugere que a troca de pisada  pode gerar, como resultado, uma exposição a sobrecarga em regiões não adaptadas a isso. Portanto pode-se atenuar a sobrecarga no joelho, mas, dependendo de como for esta troca, aumenta-se a sobrecarga em tornozelo e nas articulações e ossos dos metatarsos, no caso da troca da pisada de retropé para antepé. 

E por fim, quanto ao argumento relacionado ao risco de lesões, do ponto de vista epidemiológico, os autores destacaram 3 estudos que não chegaram a conclusão de existência de algum tipo de pisada menos lesivo onde, somando os indivíduos estudados nos 3 estudos, chegou-se a quase 2 mil corredores. Outros 2 estudos demonstram os locais das lesões que ocorreram em corredores de antepé: dor na região dorsal do pé, fraturas por stress nos metatarsos, e tendinites no tendão do calcâneo e tibial posterior. E outro estudo não demonstrou diferença na taxa de lesões, nem tão pouco na performance e na quilometragem rodada indicando a inexistência de benefício com algum tipo de pisada. Qualquer colocação diferente desta, Hamill e Gruber classificam como uma afirmação especulativa, já que os trabalhos científicos não conseguem demonstrar um tipo de pisada menos lesivo. 

Para concluir, os autores afirmam que a alteração do tipo de pisada pode resultar um menor estresse no tecido mais utilizado durante o padrão habitual de corrida, podendo levar à possibilidade de uma segunda lesão. A troca pode ser benéfica para alguns corredores, mas os dados atuais da literatura ainda não são capazes de  recomendar a troca para a maioria dos corredores, principalmente os recreacionais. 


Referência: 

Hamill, Joseph, and Allison H. Gruber. "Is changing footstrike pattern beneficial to runners?" Journal of Sport and Health Science  (2017): 146-153.

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